1.14.2010

Filmes em Dezembro/2009

Tetro, de Francis Ford Coppola (Tetro, 2009)

A luz que te faz enxergar é a mesma que pode te cegar. Coppola volta-se novamente para um drama familiar, onde o misterioso Tetro tenta afastar seu irmão e todas histórias que cercam seu pai. Cada plano é um verdadeiro deleite para os olhos e Vincent Gallo é capaz de hipnotizar em cada close. Ele prefere viver das sombras a encarar os holofotes, restando ao seu irmão Bennie cavar fundo e dar vida a essas histórias, achando que expressar essas memórias seria capaz de salvar Tetro. Como se apenas a arte -- música, dança e teatro -- pudesse retomar essa antiga relação entre os dois. Entre os dois posiciona-se Miranda que, mesmo claramente ao lado de Tetro, está sempre "alimentando" Bennie, sem nunca parecer oculta numa neutralidade. Ela tem suas próprias convicções e é bastante complexa, algo que tantos contestam nas personagens femininas das obras de Coppola. Melodrama dos bons, que parece ganhar sentido só no final, sem que nunca precise no entanto, se esforçar para surpreender.


Goodbye Solo, de Ramin Bahrani (Goodbye Solo, 2008)

Os dois elementos principais do filme, o carro e o suicídio, são claras referências a Gosto de Cereja, que logo são escancaradas com o táxi cruzando uma rua chamada Cherry. Sem nunca ousar atingir a sensibilidade de Kiarostami para tratar desse assunto, o filme conta com aquela aura indie americana, de personagens com origens diferentes procurando lidar em harmonia. O diferencial aqui, de outras produções recentes como The Visitor, é que o extrovertido senegalês é quem mostra-se disposto a entender as razões para o escapismo do americano. Sabendo do destino irrevogável de seu parceiro, Solo tenta enfrentá-lo com otimismo mas vai sentindo o peso dessa decisão a medida que investiga seus motivos. Há uma certa mão pesada para abordar os ciclos de nossa vida, é verdade, mas que não chega a atrapalhar o desenvolvimento dessa contida relação entre os dois.


Julia, de Erick Zonca (Julia, 2008)

Tilda Swinton faz seguramente a melhor atuação de sua carreira e duvido que alguma outra performance feminina chegue próxima dela nessa temporada americana. Apesar de parecer uma história manjada do adulto perdido amadurecendo ao conviver com uma criança, ela vai além por essa relação ser forçada durante o filme e apresentada através de um recurso que muito me agrada: as transformações da personagem acontecem de acordo com os desdobramentos do roteiro. Como por exemplo, quando Julia fica dividida entre assumir ou não o papel de mãe do garoto para negociar seu sequestro. Claro que somos obrigados a abrir concessões para crer nessa história, principalmente em relação à passividade do garoto quando é raptado, mas não há como deixar de ser conquistado por cada mudança cercada de incertezas de Julia.


In The Loop, de Armando Iannucci (In the Loop, 2009)

Impressiona a avalanche de humor verbal durante seus 90 minutos, beirando quase o absurdo. Basta desligar-se um pouco para perder uma piada. A sátira à burocracia na política é bastante certeira, mesmo que em relação à política americana já pareça agora um pouco datada. Não sei como era a versão original da série inglesa, mas fizeram um excelente trabalho para amenizar algumas "pontas" desse roteiro em longa duração. Uma delas é Tucker, que rouba qualquer cena só por entrar pela porta, mas com seu sarcasmo descarado, boca suja e referências em série poderiam cansar quando expostos demais. Outro arco que sozinho não funcionaria é de Simon Foster, principalmente por ele ser vítima dessa política e consequentemente do filme durante todo o tempo. Mas em meio a tantas reviravoltas e armações nos bastidores, sinto que tiveram de abrir mão de um verdadeiro protagonista, ou até sacrificar alguns personagens. Sinto pelo general de Gandolfini aparecer por tão poucas vezes, por exemplo. Por isso que ainda acho que é um tipo de humor que se encaixa melhor na televisão.


A Caixa, de Richard Kelly (The Box, 2009)

Depois de muito resistir, assisti antes a Southland Tales, o filme anterior de Kelly que foi vaiado em Cannes há alguns anos atrás. Espero um dia poder escrever algo de valor sobre o filme, assim que passar a fazer algum sentido para mim. Posso até entender as sátiras a Hollywood e à televisão americana, mas acho que Kelly passa dos limites quando tenta relacionar com política e economia. São boas ideias, mas que pedem por uma maior "disciplina". Aliás, a política, sem tomar partido, é um dos assunto que aparecem frequentemente nos trabalhos de Kelly. Em A Caixa, há um leve flerte relacionado às escolhas que fazemos, podendo influenciar nos destinos dos desconhecidos. O clima tenso é muito bem estabelecido, assim como a misteriosa origem da caixa e seu portador, emissário de um poder superior, relacionado às atividades da NASA ou mensagens divinas. Infelizmente, a segunda metade, quando Kelly decide enfim dar chance às suas divagações e submeter seu personagem a uma jornada, acaba de uma forma inconclusiva e até frustrante. E embora conte com Cameron Diaz, ela chega até a ser um destaque perto de seu canastrão marido.


Avatar, de James Cameron (Avatar, 2009)

Chega a ser desnecessário elogiar as deslumbrantes imagens vistas em Pandora, que logo fazem você sentir-se totalmente imerso nesse fantástico mundo. Ainda mais se disser que essa foi minha primeira experiência numa sala IMAX. Explorar ao máximo essa nova tecnologia 3D, permitindo movimentos de extrema naturalidade de seus personagens e planos com uma profundidade de campo incríveis (como nas duas cenas de briefing), parece ser a principal missão de James Cameron nesse seu projeto milionário. Várias cenas até denunciam essa tentativa de querer impressionar, seja numa tacada de mini-golfe ou num pequeno ser que chega voando para encantar um dos personagens. Mesmo assim, essa história simples do bem sobrepujando o mal no final, típica dos bons desenhos animados infantis, não pode ser minimizada. Primeiro porque esse tema de aceitação entre os povos, cercado de esperança, dialoga muito bem com o desenvolvimento tecnológico e o domínio do 3D (a máquina) sobre o cinema (o humano). Segundo porque o filme nunca tenta ser mais do que isso, num discurso extremamente sincero de seus motivos e fins, ainda que parecendo ingênuo por tantas vezes -- que facilmente permitem enquadrá-lo nas mesmas referências de Dança com Lobos e até Pocahontas. Avatar é definitivamente uma experiência para ser sentida nos cinemas (de preferência em 3D), tornando-se quase impossível, pelo menos para mim, imaginar revê-lo em uma televisão. Ainda duvido que essa seja a revolução que salvará as salas de cinema, até pelo alto custo envolvido na produção, mas é mais um exemplo da competência de Cameron em fascinar através da imagem cinematográfica. Algo que , assim espero, nunca deverá morrer.


O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella (El Secreto de sus Ojos, 2009)

Depois de The Wire, confesso que será difícil me impressionar com outra investigação que envolva corrupção, troca de favores e proteção política. Porém, o "segredo" de Campanella é ir além ao tratar das impressões de seu protagonista, retratado pelo sempre excelente Ricardo Darín. Enquanto conta sobre o caso que mais lhe marcou durante sua carreira, há toda uma ambição por trás de cada um de seus atos que move e por vezes arrasta a trama. O romance com sua chefe talvez seja o exemplo mais claro, nessas idas e vindas no tempo de forma brusca, muitas vezes tirando o foco do caso em si e mostrando o quanto a forma de reportar de Benjamin é bem imprecisa. O importante é que conseguiu me fascinar -- talvez pela presença do ator, é verdade -- até no escandaloso travelling perseguindo o suspeito durante o jogo de futebol.


Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow (The Hurt Locker, 2008)

Supervalorizado, eu diria. E nessa glorificação do filme, principalmente por parte da imprensa americana, o que talvez seja mais preocupante é essa visão ligeiramente maniqueísta nessa guerra ao terror. Mas não é esse o fato que mais me irrita no filme, e sim o método James Bond de seu protagonista agir, até apresentando uma curiosa semelhança física com Daniel Craig. Sua mania de desarmar bombas em silêncio, sem deixar ninguém a par do que está acontecendo, parece um recurso barato para criar um clima de tensão. Não que o filme precisasse disso, até por já estabelecer na primeira missão a urgência dessa operação. E esse personagem parece tão contraditório que apesar do acerto na cena em que ele emociona-se com a morte do garoto, logo depois há uma inexplicável corrida por toda a cidade para encontrar seus responsáveis. De certa forma pra mim, até arruina um pouco esse paralelo com a droga, principalmente se comparado ao tratamento dado a essa guerra por Generation Kill.


Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen (Whatever Works, 2009)

Funciona basicamente porque essa perspectiva de mundo em estado de desgraça acomoda-se perfeitamente na amargura do Larry David de Curb Your Enthusiasm. A ideia sobre o amor de Boris, constatando que em resumo não depende só da teoria, opõe-se ao que vemos em 500 Dias com Ela, por exemplo, que é tantas vezes comparado injustamente à sua obra-prima Annie Hall. Ou seja, Woody Allen pode não sair de seus domínios e ainda assim consegue ser muito melhor sucedido. Ainda que esforce-se demais em adequar todos os personagens na mesma perspectiva de Boris, como se fosse uma espécie de tese, o filme é salvo pelo talento de Allen em trabalhar cada uma das mudanças de ponto de vista.

12.31.2009

Filmes em Novembro/2009

No Meu Lugar, de Eduardo Valente (Idem, 2009)

Apesar de abordar o tema recorrente da violência inexplicável no Rio, o filme ganha em complexidade pelo uso dessa estrutura de multiplot. Não da forma que estamos habituados a ver, já que esses personagens não se cruzam no decorrer do filme, apenas no crime propriamente dito, seu ponto crucial. Mas mesmo assim, não existe por assim dizer um encontro físico, apenas psicológico. Seguem-se então três tramas distintas, situadas até em tempos diferentes, com um certo distanciamento que garante todos esses contrastes da sociedade e o desentendimento entre as partes. Fica registrado o desconhecido na sacada que dá de frente para a favela ou pelos objetos deixados na cena do crime. Uma pena que nessa análise mais abrangente e aleatória da situação perde-se também a chance de "sentir" esses personagens. Isso sem falar na irritante inserção por repetidas vezes da mesma trilha sonora intrumental por grande parte do filme.


500 Dias com Ela, de Marc Webb ((500) Days of Summer, 2009)

Se tivesse de definir em uma só palavra, diria que é um filme prático. Isso porque Tom já começa a história trazendo consigo sua própria definição de amor ideal e caminha pelo filme todo até ter seu conceito reforçado. De certa forma, como Marc Webb é conhecido pela direção de vários videoclipes, seria uma ideia bacana se fosse concluída em 5 minutos, mas acaba prolongada por mais 85. E o pior é que nem com todo esse tempo sobrando, os personagens deixam de ser rasos. Temos os amigos de Tom, por exemplo, que precisam se apresentar e deixar bem claro quando e como conheceram o protagonista. Se não fosse por isso, ou nem saberíamos quem são, ou passariam batidos como simples figurantes para que o personagem não falasse sozinho.
Esse excesso de explicação, como se quisesse te conduzir e dizer aquilo que é "importante", é com certeza o que mais me irrita no filme. Poderia citar várias cenas, mas pra manter a concisão, darei o exemplo de apenas dois desses recursos. O primeiro é aquela sequência em que Tom vai ao apartamento de Summer e a tela fica dividida em duas, mostrando suas expectativas de uma lado e a realidade de outro. Numa sutil ofensa, o diretor parece subestimar seu público (ou até o ator) achando que mostrar as frustrações de Tom durante a festa não seriam suficientes para causar impacto. Outro exemplo é o constante uso daquele contador toda vez que a história vai sofrer uma mudança temporal, como se já não fosse inútil o suficiente esse recurso de contar a história fora de ordem. Fora que todas as vezes que o contador aparece, uma pequena animação também já te adianta quais serão as motivações de Tom e como o espectador deverá reagir à cena. Nem mesmo a fofura de Zooey Deschanel consegue salvar o filme do desastre, provando que Summer sozinha não faz verão. Pois é, fica aí minha homenagem ao trocadilho mais cretino dos últimos tempos no cinema.

12.28.2009

Filmes na Mostra SP 2009

A Religiosa Portuguesa, de Eugène Green (A Portuguesa Religiosa, 2009)

Com uma geração tão criativa surgindo nos últimos tempos em Portugal, é interessante acompanhar uma visão estrangeira do país. Mas Green vai muito além disso, abrindo espaço para a discussão do que é cinema e até arte, no encontro entre sua atriz e a freira que lhe serve de referência. Até atingir esse clímax, o filme segue com extrema fluidez diversos encontros da atriz pelas ruas de Lisboa, seja com uma reencarnação do Rei Salomão, reafirmando a cada encontro a providência do roteiro/Deus, ou um menino orfã, que mais tarde iria lhe conferir até o papel de mãe. Há toda uma fascinação também no próprio ato de filmar, escolhendo as mais belas paisagens e improvisando em frente a câmera, com se cada cena viesse preenchida pela vida. E para um filme que preza pelo significado do impalpável, essa talvez seja sua maior qualidade.


Fish Tank, de Andrea Arnold (Fish Tank, 2009)

Assim como a protagonista Mia, o filme começa bastante preso tanto à visão dos Dardenne quanto às obras mais autorais de Van Sant. A princípio tudo que ela tenta é correr, mas à medida que Mia começa a encarar sua condição, o próprio filme vai tomando forma e libertando-se, graças principalmente a Katie Jarvis, mais um talento descoberta nas ruas inglesas. Apesar de tantas vezes desiludida, a graça do filme está nas cenas de dança, que ultrapassam limites e até chegam a unir a família. Nesse momento tudo muda de tom, as cores, a iluminação e a movimentação, como se fosse o único momento que realmente garantisse algum prazer na vida dessas pessoas.


Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, de Karin Aïnouz (Idem, 2009)

Não quero desmerecer o filme, mas esse título provavelmente é a parte mais bela dessa produção. Tratando da distância do motorista de caminhão e sua amada, o único pecado da história é ela parecer previsível demais desde o começo. Mas não importa, sem nunca aparecer frente a câmera, o caminhoneiro nos conquista pelo seu contraditórios sentimentos de determinação e saudade, tantas e tantas vezes reforçados, enquanto deixa personagens fascinantes pelo seu caminho.


Faça-me Feliz, de Emmanuel Mouret (Fais-moi plaisir!, 2009)

Esse tipo de comédia não chega a me atrair normalmente, mas não posso deixar de reconhecer o bom ritmo de Mouret em suas peripécias. Talvez a primeira discussão com a namorada seja minha cena preferida por essa visão de amor como um jogo e desafio. Infelizmente, pelo resto da história as personagens deixam de ser importantes para todas as gags que vem a seguir.


Polícia, Adjetivo, de Corneliu Porumboiu (Politist, adj., 2009)

Acho que o grande acerto de Porumboiu é saber estabelecer exatamente o fator tempo em suas investigações. Pode parecer tedioso, mas é apenas para nos situar e simbolizar como a burocracia e o Estado vão contra a resolução desse caso tão corriqueiro. Como diria Prop Joe em The Wire, não há nada que mate mais policiais no mundo do que o tédio. O que me chamaram batante atenção também são os momentos mostrando a rotina do protagonista, em discussões "pontuais" na hora do jantar. Claro, apenas servindo de introdução para o grande clímax, quando o chefe do departamento promove um exercício de semiótica e sintaxe para convencer o policial de sua verdadeira função. Brilhante.


Singularidades de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira (Idem, 2009)

Com simplicidade e precisão, Manoel de Oliveira filma um conto, quase piada, de Eça de Queiroz. Seu culto pela imagem, de extremo cuidado em cada plano, encontra correspondência com a paixão do rapaz pela figura de sua vizinha à janela. E depois de tanto instigar o espectador com a história contada pelo rapaz a bordo do trem, a última cena termina de forma abrupta em um anti-clímax, mas que carrega todo o sentido de conclusão. Afinal, não existe mais para onde o filme "fugir" quando essa imagem já parece desmistificada e nem sobram motivações para o rapaz.


Sedução, de Lone Scherfig (An Education, 2009)

Muito cotado para essa temporada de prêmios, é mais um daqueles fenômenos que não consigo entender. Nem mesmo Carey Mulligan, tão elogiada no papel de Jenny, chegou a me impressionar. A história basicamente tenta dar conta do papel da mulher do início dos anos 60, naquele conflito entre modernidade e conservadorismo, mas sempre da forma mais rasa possível em todos seus exemplos. Na verdade, pela presença forte da protagonista, ser conquistado por ela é fundamental para apreciar o filme. E confesso que esse é meu problema. Não consigo ir além de sua ingênua petulância, suas frases de efeito em francês ou sua falsa maturidade. Mas é fato que a própria estrutura do filme condena suas ações, desde quando é seduzida por David até seus pais forçando que ela aproveitasse a oportunidade. Jenny não toma suas próprias decisões e serve apenas como vítima de seu próprio filme.


Vencer, de Marco Bellocchio (Vincere, 2009)

A história de Ida Dalser, por tanto tempo mantida secreta, primeira mulher de Mussolini e um de seus principais apoios no início de sua carreira política. Os primeiros anos de seu relacionamento, são mostrados logo no primeiro ato de forma vibrante, tanto na trilha sonora como nas imagens e grafismos futuristas. Mas quando Mussolini se estabelece no poder, Ida é condenada ao manicômio (bem semelhante a A Troca) e desiludida. Carrega-se no melodrama e a história parece dividida entre acreditar nessas conspirações ou considerá-las delírios da própria Ida. Nem preciso destacar a atuação brilhante de Mezzogiorno em todas essas mudança de tom. E depois de virar mito, Il Duce nunca mais volta a aparecer além das imagens de arquivo, como se nem mesmo o próprio ator, Filippo Timi agora no papel do filho Benitino, pudesse chegar perto, cabendo apenas imitá-lo como uma caricatura. O final, que reprisa a bela introdução em que Mussolini desafia Deus, serve como para sustentar uma tese, principalmente sabendo a forma como ele foi executado anos depois.


Abraços Partidos, de Pedro Almodóvar (Los Abrazos Rotos, 2009)

Penelope Cruz sempre deslumbrante, ainda mais usando sua peruca loira. Almodóvar sempre fascinante. O prazer está em acompanhar até onde o filme pode chegar para deixar sua homenagem ao cinema. A história é um melodrama bem convencional, mas aposta nos pequenos detalhes e na própria ironia para funcionar, enquanto domina muito bem essas duas linhas de tempo. Interessante também como o acidente influencia cada um de seus personagens, preenchendo tantos arcos.


A Fita Branca, de Michael Haneke (Das weisse Band, 2009)

Haneke tenta através das imagens de alto contraste retratar a violência contida numa pequena comunidade alemã já às portas da guerra. Durante grande parte do filme, o que ocorre diante das câmeras apenas sugere esses atos violentos, seja nos crimes em si como na punição dada às crianças. Tudo isso não passa de uma amostra do mundo em miniatura, mas sempre preocupado com os atos individuais, principalmente pelo espaço que seus corpos ocupam diante da câmera. Mas é no final do filme que Haneke decide abandonar toda essa sutileza e entregar seus personagens à máxima da sociedade opressora. Perde-se individualidades e tenta-se ir fundo nas exposições. Até associações primárias entre cenas são feitas, partindo de abusos verbais e sexuais até chegar à violência propriamente dita.


Vício Frenético, de Werner Herzog (The Bad Lieutenant: Port of Call - New Orleans, 2009)

Herzog armou o palco para ver Nicholas Cage brilhar. E o ator claro, com todos seus excesso, não deixa de perder a oportunidade. Mas isso não atrapalha de forma alguma o andamento do filme, porque afinal, essa era a intenção desde o começo. Explorando seu vício e passando por cima de todas as normas e condutas, Herzog mostra um certo fascínio ao acompanhar a forma cômica com que seu policial personifica o mal. Ou até a providência desse mal ser recompensado no final. E nem mesmo assim o filme deixa espaço para qualquer discursos morais, já que nunca tenta te convencer que aquilo é real. Pois é assim que as cenas dos maiores delírios de Cage também se mostram: estéticos e totalmente excessivos, mas que serão necessários pra resolução da própria história.


Mother, de Joon-ho Bong (Madeo, 2009)

Talvez somente pela cena dos créditos iniciais, quando Kim Hye-ja dança para a câmera de uma forma hipnotizante e traduzindo tantos sentimentos complexos num só olhar, já poderia considerar essa uma das melhores performances do ano. Mas ela ainda tinha mais a oferecer durante todo o filme, protegendo seu filho de ser capturado por esse thriller. Já vi gente descrever o filme como psicológico, dado todo o problema mental e certa perda de memória do garoto. Mas não é. O truque de Joon-ho é cortar a cena crucial do filme para garantir suspense até o fim, soando quase como uma trapaça. Somado ao fato de um forçado álibi aparecer no último segmento, Mother tinha tudo para exigir mais dos próprios atores -- todos fantásticos, aliás -- ao invés de apelar para enganar o espectador. Mas se ainda tenho direito de dizer, a técnica de acupuntura da mãe é uma daquelas metáforas orientais das mais interessantes que vi nos últimos tempos. Afinal, com as agulhas feitas para perfurar ela promove curas, assim como toda sua jornada para salvar o filho durante o filme.


Ervas Daninhas, de Alain Resnais (Les Herbes Folles, 2009)

Resnais foi minha primeira escolha do Festival e talvez poderia ter me contido e escolhido algo mais tradicional. Mas não me arrependo, já que o próprio prólogo te apresenta a situação de uma forma toda peculiar, sem mostrar rostos, introduzir personagens, todo focado no objeto em questão: a carteira. A partir daí o filme toma rumos completamente inesperados, bem no clima das viagens de avião de Marguerite, que tanto fascinam o protagonista. É uma história que tem tudo para descambar para o romantismo barato, nesse encontro do verdadeiro amor através de conveniências do destino, mas os personagens viram as costas pra isso, quase como se considerassem uma farsa. Às vezes complexo, com algumas cenas imaginadas que aprecem contraditórias até com as situações em si, é uma pena que tenha sido exibido numa cópia tão mutilada na Mostra (digital com as laterais cortadas), não sendo possível aproveitar ao máximo os belos planos e a extensa paleta de cores de Resnais. Embora tenha certeza de sua qualidade, fica para uma próxima oportunidade dar ao filme seu valor de direito.




Outros filmes com comentários mais breves ainda:

I Love You Phillip Morris, de Glenn Ficarra e John Requa (Idem, 2009)
Carrey incorporando mais um papel que cai como uma luva para ele. Seu romance com Ewan McGregor chega a ser bastante clichê em grande parte do filme, mas não deixa de ter competência em pelo menos saber os momentos certos de desenvolver arcos e concluir a históira.

Ricky, de François Ozon (Ricky, 2009)
Talvez a melhor forma de comentar sobre esse filme seja dizendo o mínimo possível antes que estrague a experiência de alguém. Basta dizer que desde a primeira cena, servindo para situar-nos do que vem a seguir, Ozon já sabe exatamente como controlar nossas expectativas, antes de surpreender a todos com um repentino suspiro.

Making Plans for Lena, de Christophe Honoré (Non ma fille, tu n'iras pas danser, 2009)
Quando Honoré parece finalmente render-se aos tradicionais dramas familiares franceses, ele decide concentrar-se em Lena, a sempre excelente Mastroianni. Mas talvez seja seu maior erro, não dando o devido valor àqueles que julgam Lena o tempo todo, parecendo apenas implicar com ela. Em meio a tanta pressão, Lena acaba tomando sua decisão, mas nem por isso termina de uma forma mais digna, ainda mais pela presença de seu ex-marido, que com toda sua ponderação ao lidar com os filhos não parece ajudar muito. Entre as decisão de roteiro e edição, diria que o conto da dança medieval funciona para caracterizá-la, mas o flashback pareceu desnecessário e um pouco deslocado.

Sede de Sangue, de Chan-wook Park (Bakjwi, 2009)
Juro que se soubesse que era mais um filme de vampiros, teria desistido na hora. Nada contra, Deixe Ela Entrar está entre meus favoritos do ano passado, mas conhecendo Park Chan-Wook já podia imaginar do que ele seria capaz. Até chegar ao excelente final, ele esgota todas as possibilidades possíveis de massacres envolvendo vampiros. Tudo servindo apenas para mostrar sua estética apurada.

O Que Resta no Tempo, de Elia Suleiman (The Time That Remains, 2009)
Sketches palestinos, quem diria? São vários pequenos atos com base em repetições, contando toda a trajetória da própria família de Suleiman enquanto vivem o tempo que resta além dos conflitos, desde a (escandalosa) criação do Estado de Israel. Nunca pesando demais no contexto político, mas sempre dedicado a fazer uma análise social das situações.

Seguindo em Frente, de Hirokazu Koreeda (Aruitemo aruitemo, 2008)
Achei decepcionante, principalmente pelo final que teima em querer significar demais e supervalorizar aquele encontro familiar. Ou por assim dizer, o próprio filme. São tantos apelos para símbolos, como a ponte, a praia e o navio, que chegou a me irritar, mesmo que Kore-eda ainda mostre controle de todas suas cenas intimistas, unindo essa família para relembrar a morte de um de seus entes.

Tokyo!, de Michel Gondry, Leos Carax e Joon-ho Bong (Tokyo!, 2008)
Seguindo a mania de fazer filmes para promover cidades, diria que o único grande destaque é o último curta, dirigido por Joon-Ho Bong, que pelo menos sabe assumir o tédio que é, além de ser tecnicamente muito bom. Já o segundo curta, de Carax, chega a ser um insulto de tão ruim.

35 Doses de Rum, de Claire Denis (35 Rhums, 2008)
Uma simples trama central, priorizando a contemplação dessa relação afetuosa entre pai e filha (em homenagem a Ozu), com base na rotina e em cada gesto de carinho que unem os dois. E a tal cena da dança no restaurante ao som de Commodores é absolutamente linda, em cada movimento e olhar. Mas talvez já estivesse vencido pelo cansaço para não achar toda essa maravilha que faz tantos críticos considerá-lo como melhor do ano.

Distante Nós Vamos, de Sam Mendes (Away We Go, 2009)
Um road movie em que um casal procura um lugar para fixar-se e criar seu filho, prestes a nascer. Krasinski e Rudolph funcionam muito bem, mas não merecem grande parte dos péssimos personagens que precisam enfrentar pelo caminho. Talvez simplesmente para garantir que eles não sejam os grandes perdedores ao final.

12.10.2009

Filmes em Setembro-Outubro/2009

Demorou, mas finalmente vou atualizando aos poucos esse blog. Embora tenha tudo anotado do que nos últimos meses, preciso só arrumar tempo pra passar tudo pra cá. Nesses dois meses em questão também fiz duas revisões: Medos Privados em Lugares Públicos, do Resnais, e Jackie Brown, do Tarantino. Ambos, por suas qualidades particulares, continuam despertando toda minha admiração.

Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. (Inglourious Basterds, 2009)

Você pode achá-lo genial ou picareta, mas o próprio Tarantino diverte-se demais chamando atenção para si mesmo em seus filmes -- ou alguém esquece do letreiro "4º filme de Quentin Tarantino" logo no início de Kill Bill? Em Bastardos Inglórios não vemos nada disso, pelo menos até chegarmos à última cena, quando um triunfal Aldo Raine declara para a câmera: "acho que essa é minha obra-prima". Não daria para concordar mais, além de dizer que esse é com sobras o melhor filme do ano.
A verdade é que Tarantino é um apaixonado pelo cinema e isso transparece em cada um de seus filmes. Apropriando-se de uma história passada na Segunda Guerra, completamente fora de sua zona de conforto (não existe nem cultura pop!), ele desenvolve-a de uma forma única, somente possível dentro desse seu Universo. É uma declaração de amor ao cinema mostrando como essa linguagem é capaz de mudar os rumos da própria História, deixando até um dilema no final: seria essa uma história sobre a Segunda Guerra através do cinema ou uma história sobre o cinema através da Segunda Guerra?
O primeiro capítulo do filme é certamente a melhor sequência escrita e dirigida por Tarantino até hoje, tanto pela atuação de Christoph Waltz quanto pela conversa amistosa, captando toda a tensão no ar, até chegar ao ultimato e instalar-se o terror. Há todo um controle de expectativas, mantendo o suspense até o último momento, quando somos surpreendidos. Como na cena da taverna em que sabemos durante os mais de 20 minutos que ninguém sairia vivo quanto mais o major tentasse investigar, e tudo é concluído em poucos segundos sem nem ser possível distinguir heróis de vilões.
Mas o filme apresenta sua grande subversão dos valores judeus convencionados pelo cinema. Entre exemplos há tanto o paralelo entre a marca nazista cravada na testa dos soldados como se fosse a circuncizão dos judeus, quanto Marcel prendendo a todos na sala do cinema como se condenasse à câmara de gás. Shosanna é a grande prova de que se um judeu tivesse a chance de se vingar, faria com toda a certeza. Ela sacrifica-se, mas eterniza sua imagem na tela de cinema que mesmo entre chamas e fumaça, continua ali rindo e testemunhando a morte de cada um daqueles nazistas, que correm agora como ratazanas. Hitler morreu tendo sua face metralhada e um cinema derrotou o nazismo. Existe prova maior de amor ao cinema?


Inimigos Públicos, de Michael Mann. (Public Enemies, 2009)

Por mais que fiquem claras as intenções de Mann com seu filme, infelizmente não chegam a me convencer. Primeiro, porque hoje em dia tenho dificuldade de levar a sério Johnny "Sparrow" Depp. Segundo, porque não aceito que ele tente mitificar Dillinger em detrimento dos coadjuvantes. Talvez o problema esteja no livro do qual foi adaptado, que levanta pesquisas da época dessa onda de crimes que Dillinger esteve envolvido, mas nunca se aprofunda em nenhum desses personagens. O que restam são cenas isoladas seguindo o protagonista entrando e saindo dos lugares por onde passou, em que o diretor acaba mais estabelecendo sequências do que realmente realizando-as. No final, a medida que o cerco do FBI vai se fechando, fico com a impressão de que todo o estilo de Dillinger é apenas uma maneira de ele fazer de idiota a si próprio.


Anticristo, de Lars von Trier. (Antichrist, 2009)

Definitivamente não recomendaria nem para meu pior inimigo. Mas não posso deixar de reconhecer os méritos de von Trier. Ainda que seja fazendo outro filme de gênero, o diretor está bem mais a vontade do que em sua tentativa anterior com a comédia (em O Grande Chefe). Afinal é impossível não perceber o aspecto provocador de von Trier nesse filme de terror visceral que já começa numa altamente produzida cena de sexo em slow-motion. A partir da queda do filho de uma janela, começa também a ruína da condição do casal. Podem falar o que quiser, mas é um filme que te perturba do início ao fim, impondo contradições e tentando confrontar o tratamento psicológico do marido e os estudos sobrenaturais da esposa, na floresta chamada Eden. O que diferencia Anticristo de qualquer outro filme de terror é a impossibilidade de considerar tudo encenação, dado o grafismo e veracidade da violência na tela. Uma amiga chegou a classificá-lo como "pungente". Acho que não teria forma melhor de descrevê-lo também...


Amantes, de James Gray. (Two Lovers, 2008)

Nunca fui grande fã de Donos da Noite, o filme anterior de James Gray, talvez exatamente pela presença de Joaquin Phoenix -- que de certa forma, deve ser em repúdio aos outros dois filmes do Shyamalan. Mas pra falar a verdade o que me incomodava mesmo era o roteiro esquemático. Então, qual não foi minha surpresa pela elegância em retratar o frágil Leonard. Apesar de ser definido pelo abandono sofrido de sua ex-noiva, isso só nos é revelado na metade da história. Até lá acompanhamos toda preocupação de sua mãe e logo de início uma tentativa frustrada de afogar-se. Confesso que esperava que essa cena fosse a conclusão dessa história, aquela que daria o tom do resto do filme contado em flashback. Mas fui surpreendido, assim como pela bela saída final. Leonard passa o tempo dividido entre a tradição de Sandra e a exuberância de Michelle. A primeira está sempre visitando sua casa junto da família, vigiada pelos quadros nas paredes de seus antepassados e é a forma mais segura de garantir seu futuro e de seus pais. Já a segunda representa a aventura, a paixão quase adolescente vista pela janela de seu quarto e as visitas a Manhattan nos túneis sem fim do metrô. O mérito de Gray é por estabelecer uma proximidade entre protagonista e espectador, sem chance de julgá-lo ou até dar um caráter paternal a relação, principalmente pela forte presença de sua mãe. Bela surpresa, desde já um dos meus favoritos nessa década.

8.31.2009

Filmes em Julho-Agosto/2009

Se Beber, Não Case, de Todd Phillips. (The Hangover, 2009)

Se isso acontecesse numa série, com certeza estaria reclamando das situações absurdas que os amigos se encontram depois da noite de bebedeira, convenientes demais pra desenvolver qualquer outro tipo de história paralela. Mas aqui as coisas funcionam, com um roteiro bem redondinho e sabendo encerrar de forma digna o filme (é um alívio não levantarem polêmica com o carro destruído). Algumas piadas são inspiradas, outras já parecem datadas e até previsíveis, mas quer saber? Acho que dei mais risada nas fotos dos créditos finais do que em todo o filme, o que pra mim é um grande problema. Destaque para o sempre competente Ed Helms, que obviamente teve seu talento musical utilizado, e Galifianakis, que foi homenageado com a presença de Can't Tell Me Nothing do Kanye West na própria trilha sonora, com certeza um dos clipes mais bacanas do universo.


Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi. (Drag Me to Hell, 2009)

O uso excessivo de TODOS os tipos possíveis de efeitos sonoros para terror é bastante irritante, principalmente porque o que acaba se destacando mesmo são os momentos de silêncio. Sam Raimi acerta na direção nesses casos, sempre surpreendendo quando já espera-se um susto. Tem uma boa montagem também, mas não vai nada muito além de um bom filme de terror, com figuras macabras e rituais. A única coisa que achei completamente desnecessária é o longo confronto da moça com a bruxa, logo no começo. Pode até ser só alucinação, mas não precisava expor tanto desse jeito num primeiro momento. Todas as outras barbaridades são bastante legais, até a armadilha da bigorna. Fica aqui também a homenagem a todos os tufos de cabelo que a protagonista perdeu no decorrer da história.


Adventureland, de Greg Mottola. (Adventureland, 2009)

Mottola oferece um retrato dos anos 80 tão perfeito que muita gente já se esforça até em compará-lo ao saudoso John Hughes. O fato é que o diretor mostra uma grande evolução depois de seu último projeto, Superbad há dois anos atrás. Tudo acontece quando James tem de passar suas férias frustradas de verão trabalhando num daqueles divertidos parques de diversão da época e, recém saído do colégio, sente-se pela primeira vez livre. Obviamente que ele descobre o amor, e sensibilidade não falta para tratar desse romance no decorrer da história. Apesar de todos os personagens pedirem para ser adorados, o tratamento dado ao encontro de James e Em é o que faz movimentar o filme. Enquanto o protagonista vai conhecendo mais a garota, também somos apresentados pouco a pouco, mas sempre um passo à frente nessas descobertas. Isso dá um caráter de cumplicidade muito bacana, e mesmo que simpatizar com Em seja difícil para alguns, é possível perceber também a fragilidade da garota. E ainda que James tenha de eventualmente ser cruel para garantir o suspense final, a conclusão é muito justa. Pra quem viveu essa época, com certeza será um prazer relembrá-la aqui, na bela ambientação e trilha sonora.


Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. (idem, 2008)

Tentei duas vezes assistir a esse filme na Mostra do ano passado. Ambas as sessões lotadas, durante a tarde e em dias úteis. Completo absurdo, só porque era o queridinho da crítica. Passado esse quase um ano, só tenho a dizer que pareceu valorizado demais. Concordo que transborde espontaneidade e tenha esse carinho todo especial com esses festivais portugueses do mês de agosto, mas a primeira parte sofre demais com essa lentidão. É verdade que o filme engrena quando dá lugar à narrativa, uma bela história de amor nesses cenários maravilhosos, mas toda essa preparação e descobrimento não chegaram a me conquistar. E olha que não tenho nada contra a música popular portuguesa. Até a cena final da discussão com o captador de som me pareceu forçada. Vale sim é pelo encontro do dois primos, pela carência do pai da moça e pelo belos olhos da protagonista, que se acabam em lágrimas pra dar lugar a um sorriso desconcertante.


A Viagem do Balão Vermelho, de Hou Hsiao-Hsien. (Le Voyage du Ballon Rouge, 2007)

É apenas um simples apartamento parisiense, onde vive uma simples mãe separada e seu filho, recebendo a visita de uma simples estudante de cinema taiwanesa. Ao redor de tudo isso, um simples balão vermelho cruza os céus da cidade, hora aparece e hora se esconde como se fosse o tema mais abstrato do filme, embora estivesse no próprio título. Mas quanta complexidade pode-se extrair de algo assim tão simples? Não posso negar que é preciso paciência, principalmente porque o ritmo é lento e as cenas são bastante mundanas. Mas basta entregar-se que o filme te leva a enxergar a vida desses personagens e os locais por onde passam. Confesso que é difícil até de descrever, mas por mais que alguém possa resistir, é impossível não se impressionar com a cena em que Binoche (sempre incrível) discute ao telefone, enquanto em volta dela milhares de outras coisas acontecem no apartamento.


Flertando - Aprendendo a viver, de John Duigan. (Flirting, 1991)

Último filme australiano do início da carreira de Nicole Kidman (que só voltaria a atuar no país por Moulin Rouge dez anos depois), ainda conta com três atores que chegariam também em Hollywood: Noah Taylor, Thandie Newton e Naomi Watts. Injustamente desconhecido por tanto tempo, o filme trata do relacionamento de um casal de adolescentes nos anos 60 vivendo num internato. Ambos tem problemas pra se identificarem com seus colegas e suas habitações ficam em lados opostos de um lago. Apesar do tema parecer batido, o que se destaca é a profundidade das personagens. Até Kidman, que vive uma típica garota esnobe do internato, parece dividida quando fica sabendo dos encontros entre os dois. Mas o grande momento do filme chega no esperado primeiro contato íntimo do casal, que acaba resolvido com um inspirado diálogo, inocente e bem humorado.


Priceless, de Pierre Salvadori. (Hors de Prix, 2006)

Só pra constar, o título pra esse filme aqui no Brasil foi "Amar... não tem preço" o que nem vale a pena discutir. O que não merece discussão também é o quão adorável pode ser Audrey Tatou, mesmo como uma mulher que vive procurando dar golpes do baú. Mas o filme vira uma estranha comédia romântica quando ela acaba desenganada pelo protagonista Jean, garçom do bar de um hotel. O roteiro chega a ser tão inventivo que quando a farsa é descoberta o filme transforma-se em uma série de jogos, que afastam e atraem os dois pelo resto da história. Ao invés de previsíveis conflitos entre o casal, os dois se relacionam de um forma inocente, que chega a ser agradável ainda que sempre ligada ao dinheiro e à luxúria. Gad Elmaleh encontra também um tom certo com seu Jean, unindo um jeitão atrapalhado e charmoso ao mesmo tempo.


Watchmen, de Zach Snyder. (Watchmen, 2009)

Aviso desde já que só vi a versão do diretor, que além da excelente cena do assassinato de Hollis apresenta pouca coisa inédita que enriqueça pra quem já leu os quadrinhos. Acho que apesar da obra original ser dos anos 80, sua adaptação nunca pareceu tão urgente quanto agora, depois de tantos filmes de heróis direcionados a um público adulto e envolvendo personagens mais complexos e ambíguos, como o Homem-Aranha e o mais recente Batman. O grande mérito de Snyder é tentar ser o mais modesto possível no tratamento da história, sem comprometer a visão primorosa de Alan Moore. Ainda que a lista extensa de personagens envolvendo duas gerações diferentes seja o maior dos obstáculos, Snyder mostra uma de suas soluções logo nos créditos de abertura, com uma colagem de vários dos momentos dos Minutemen ao som de Bob Dylan, que já leva grande parte dos fãs ao delírio. Depois disso, o filme nunca mais consegue rivalizar com essa solução tão interessante, chegando até a perder o ritmo no funeral do Comediante, onde cada um dos personagens tem um flashback pra compartilhar. Visualmente o diretor continua mostrando um olhar aprimorado ao lado do cinematógrafo Larry Fong, que mesmo com planos semelhantes aos quadrinhos são de encher os olhos. Uma pena que seu fascínio pelas cenas de ação em slow-motion continue sendo sua mania mais irritante. O que parece ter dividido mais opiniões foi a conclusão reescrita que tira o impacto pra quem eventualmente não conhece a original, mas que pra mim não deixa de ser competente também. Diria até que sua explicação é muito eficiente pra quem se contenta só com o filme. A única coisa que realmente me fez falta, removida infelizmente por falta de tempo, foram as demais cenas do interrogatório do sempre intrigante Rorschach. Valeria a pena investigar ainda se Ozymandias não é interpretado pelo Jorge Del Salto de Carrossel...